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24.3.10

A caneta

Entrou no quarto e trancou a porta.
Se escorou, e a parede a ajudou a segurar o peso que estava em seus ombros.

A bolsa, que ainda não havia largado, guardava o peso maior do que acabara de cometer, de dentro dela algo muito forte e doloroso saía, um cheiro enjoativo do qual ela tinha há pouco se familiarizado.

-Quanto sangue. Meu Deus...

Não sabia ao certo o que sentir, porque o vazio tomara conta dela desde o instante em que desferiu o primeiro golpe no tórax de sua vítima. Ela forçava seus braços a empurrar aquela caneta conta o lugar exato do coração que deixou de amá-la. Ele já estava morto há muito tempo, mas apareceu o impulso de ferí-lo de alguma forma.

Então, a caneta.

E depois, a vontade maior e maior de fazê-lo acordar para pedir perdão por matá-lo desse jeito. Ela não deveria, não queria, mas impulsos não pedem, não perguntam. Simplesmente acontecem. A ferocidade com que ela fez aquilo, foi tanta que  a fez desmaiar ao lado daquele corpo sem vida, desde a primeira gota de veneno.

Acordou desejando ter tido um pesadelo, mas na verdade, estava encharcada com o sangue dele.

Levantou-se num grande susto, e desde então, tem feito as coisas assustada.

Banhou-se, esfregou o corpo com o pequeno sabonete de motel, como se quisesse tirar de si a mancha da culpa do que fizera, quase arrancando a própria pele.

Se recompôs e saiu do quarto como se nada tivesse acontecido, seu disfarce era irreconhecível, uma máscara de tranquilidade assustadora, de um monstro que, segundo ela, acabara de nascer.
Expulsou as lembranças e foi limpar a caneta, lavou-a e enxugou. Junto com a água suja do ralo foi sua culpa, nada provaria que foi ela, em sua irracionalidade, ela estava livre de pagar por aquilo.

Dias se passaram.

A investigação daquela morte já estava quase encerrada porque não se sabia quem era a mulher que saíra do quarto, o disfarce era perfeito, as câmeras não revelariam a verdade.
Como de praxe, todas as pessoas próximas à vítima foram chamadas para depor. Ela também foi chamada, sua aproximação era tão óbvia, que a esposa dele já não se importava mais. Todos sabiam que ela era só uma dentre várias.

Na porta de delegacia, um tremor tomou conta de seu corpo, mas seguiu em frente. Lá dentro o delegado a fez esperar, ficou por último.
Ela se saiu tão bem, que sorria ao ver a crença do delegado em sua mentira.

- Tudo bem, minha senhora, agora só falta assinar seu depoimento. Vejo que não há nada mais que deva fazer aqui.

Pegou a caneta que o delegado deu, mas só conseguiu rabiscar a primeira letra do nome, a caneta falhou. Ninguém conseguia encontrar outra caneta, então ela abriu a bolsa e pegou uma caixinha oval revestida com um veludo preto. Ali jazia uma certa caneta, da qual ela não ousava se livrar. Um golpe de reflexo a fez pegá-la sem pensar em mais nada, como se ela realmente não tivesse feito nada com a caneta.
Mas esta também falhou e, o delegado se ofereceu para consertar a caneta pois, segundo ele, já tinha tido uma igual.

No mesmo instante, ela lembrou-se do medo de ser reconhecida como assassina, e empalideceu. Entregou a arma, e o que a incriminava estava nas mãos dele.
O delegado sem notar, abria a caneta explicando:

- Eu já tive uma dessa; cara não é? O problema...

Dentro dela se revelou a culpa. Um pequeno aglomerado de sangue coagulado estava preso na caneta.
O delegado reconhecia sangue em todas as suas formas e reconheceu também a mentira. Juntou peças e o quebra cabeças se completou.

Ela sentiu o gosto da morte naquele naquele instante.

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